NAVEGANDO SOBRE O MAR MORTO
Se analisarmos sem prevenções o Movimento Espírita não será difícil
compreendermos a razão pela qual ele se afastou da linha de conduta vivenciada
e traçada por Allan Kardec. Ao observarmos a diversidade de atitudes e
comportamentos dos seguidores do Espiritismo, vemos que não há coesão e nem um
direcionamento delineado, sendo muitas as confusões e desvirtuamentos. Os
adeptos não se entendem. Seria muito normal, e até certo ponto aceitável, se a
discordância estivesse restrita a assuntos e temas circunstantes. Mas,
infelizmente, a má semeadura atinge as bases da Doutrina, como, por exemplo, a
propagação da idéia de que o Espiritismo não é o Consolador Prometido,
retirando-lhe o aspecto religioso. Some-se a isto o grave problema de vermos a
Federação Espírita Brasileira, órgão de liderança, divulgar e defender as obras
de J. B. Roustaing como sendo parte do corpo doutrinário. São fantasias e
devaneios de toda ordem.
Talvez o fundo de tudo isto seja a
falta da cultura racional, se assim se pode chamar. Não se tem o costume de
passar as informações e as atitudes das pessoas (e Espíritos) pelo controle do
raciocínio e do bom senso. A grande maioria dos Espíritas sequer se dispõe a
estudar as Obras Básicas. Muitos nunca estudaram de forma criteriosa. O que
sabem é produto das informações (ou desinformações) colhidas em palestras,
romances, ou transmitidas pelo guia da casa. E não se pode atribuir isto à
falta de cultura acadêmica, pois mesmo seguidores com diploma universitário se
comportam como fanáticos seguidores de certos Espíritos, oradores ou médiuns,
de forma que tudo o que estes fazem se torna padrão de comportamento, e o que
dizem se torna lei.
Estes cegos discípulos acabam por
anular suas personalidades e, por conseguinte, todo o potencial de
desenvolverem o senso moral, pois vivem sempre sob a dependência das
orientações e "ensinamentos" dos seus mestres, que também estão cegos
pela vaidade, pois que adoram esta condição e nada fazem para libertar os seus
fiéis admiradores. E é sempre aquele diálogo: "Segundo nos ensina o
Espírito fulano de tal, na obra tal...", ou, "Conforme orientação do
conceituado médium/orador fulano..." e por aí adiante. Os espíritas
tornaram-se, assim, repetidores de chavões, nada mais. Não há a preocupação de
andar pelas próprias pernas, já que muletas não faltam. E desta forma o
Codificador foi sendo negligenciado e até esquecido.
Por conta disso, o movimento foi
implementado pelos ensinamentos de mestres, sejam Espíritos ou homens, cada
qual com sua doutrina e com suas idéias pessoais. E isto só foi e é possível
porque trabalhadores e freqüentadores de centros espíritas não têm o saudável
costume de avaliar e pesar o que está sendo divulgado e praticado por homens e
Espíritos. Talvez isto seja até muito cômodo, pois o esclarecimento traz novas
e maiores responsabilidades. E quem é que quer mais responsabilidades? É mais
fácil cumprir apenas com sua obrigação perante o centro, seja no passe, na
recepção ou mesmo freqüentando-o por desencargo de consciência. Já o raciocínio
crítico e a tomada de posição ante as questões graves da doutrina demandam
coragem e determinação. Acrescente-se ainda que trazem por inevitável
conseqüência a inimizade e revolta dos muitos donos do sistema. Os que pensam e
ousam questionar são logo taxados de obsediados, de serem portadores do
espírito de divisão e outras coisas assim, muito comuns aos regimes
autoritários.
E o que se pode fazer para modificar
este panorama desanimador? Deve-se primar pelo estudo kardequiano. Mas estudar
Kardec não significa ler e decorar todas as suas obras, como os evangélicos o
fazem com a Bíblia. Necessário é ir muito além, apreendendo o sentido e o
alcance do pensamento do filósofo lionês. De que vale conhecer a letra se não
se detém o espírito? De que adianta o estudo e o conhecimento formal das obras
espíritas se as atitudes são incoerentes com a pregação?
De que aproveitam as belas palavras
de humildade, saídas das bocas dos mestres do mundo, se eles ainda continuam
preferindo os primeiros lugares? De que aproveitam as recomendações à prática
da caridade se os próprios divulgadores não dispõem de tempo para os
sofredores, já que são tantos os seus compromissos? De que serve repetir que se
deve passar tudo o que os Espíritos dizem pelo crivo da razão, se os maiores
absurdos são absorvidos e divulgados como verdade? De que adianta a
"Casa-Máter" entoar o hino da unificação se ela própria não é
democrática em suas decisões e nem na composição de sua diretoria, que é
vitalícia, tal qual o papado?
E a despeito de tudo isto, o Espiritismo
cresceu e cresce muito no Brasil. Entretanto é necessário que se mude o padrão
de comportamento dos seus divulgadores e seguidores. Se assim não o for,
estar-se-á correndo o sério risco de ver a Doutrina Espírita transformada em
apenas mais um culto religioso, dentro dos padrões normais da sociedade,
ficando, assim, muito distante de sua verdadeira finalidade, que é promover a
regeneração dos Espíritos. Deve-se voltar à origem, proceder ao despertar das
consciências, libertando-as das décadas de aprisionamento ao sistema atual. É
imperioso fomentar as discussões sadias e edificantes, buscando soluções
conjuntas e democráticas para os diversos problemas que há. Foi assim que,
através da Revista Espírita, Allan Kardec constituiu e estruturou a Doutrina.
Esta a sublime função da imprensa espírita, e a que menos se presta.
Os periódicos preenchem suas páginas
com mensagens mediúnicas repetitivas, com "notícias sociais do
movimento" e muitos artigos que pouco acrescentam. Raros são os órgãos
espíritas que se propõem a levantar os problemas e apontar soluções. A grande
maioria prefere vender a imagem de um mundo de ilusões e maravilhas "que
só o Espiritismo pode dar", levando seus leitores à alienação. Poucos
também são os homens públicos do Espiritismo que têm o ânimo e a coerência de
se colocarem em defesa do restabelecimento da verdade e do espírito crítico no
meio espírita. Isto parece óbvio, já que quanto mais esclarecimento, menos
idolatria. E como o espírito do mundo é muito forte, é preferível manter-se
conivente (e assim querido por todos) do que desagradar a grande turba.
E, nos valendo da expressão do
espírito Michel, no E.S.E., com esta aparente tranqüilidade, conseguida através
de indiferença culposa face aos graves problemas, os espíritas vamos navegando
sobre o mar morto, que oculta em suas profundezas a lama fétida e a corrupção
(E.S.E., cap. XIII, item 17).
Texto publicado no site em 16/07/99.
Leia, pense e reflita se você concorda ou não.
Elói Monteiro
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